Reportagem

Você está preparado(a) para envelhecer?

Por Lauren Steffen

Marilene Abel, no topo à direita, é a personagem que conduz esta reportagem. Ela conta como está vivendo essa fase conectada e bem-humorada.

Marilene Mendonça Abel, 63 anos, está na terceira idade recente. Para efeito legal, em países em desenvolvimento, idoso(a) é a denominação oficial de quem tem 60 anos ou mais. Aposentada há três, após exercer a função de professora alfabetizadora e supervisora de ensino, ela vive essa fase conectada e bem-humorada. Casada há 47 anos com seu primeiro namorado, o Lu, como carinhosamente chama Luis, ela encara a passagem do tempo como natural e inevitável. “Nós temos que passar por todas as fases. Agora eu estou nessa. Estou vivendo ela da melhor forma possível. Eu procuro trabalhar minha cabeça para fazer o que eu posso, o que eu consigo”. 


Marilene conta que procura investir seu tempo em projetos que tenham a sua cara e viver o momento presente. “Não faço grandes projetos; nem que não tenham a ver com a gente. É importante pensar e se programar para coisas que realmente vamos curtir, não os outros. Até a questão de guardar dinheiro na poupança. Com o meu, eu faço o que eu quiser. Eu ajudo alguém, vou passear, viajo. Não tenho isso mais da poupança”. Ela, inclusive, faz questão de mostrar seu “planinho”, um cronograma impresso onde anota seus compromissos. “Ele ajuda a não sair do foco, a não se envolver com coisas que não tenham nada a ver. No meu ‘planinho’, tem tempo para mim. Quando os(as) filhos(as) querem inventar alguma coisa, primeiro eles(as) vão saber do meu cronograma”. 

Pergunto se ela se incomoda com alguma nomenclatura para se referir à pessoa com mais de 60 anos, se tem alguma preferência. Para ela, o problema não está na escolha dos termos, mas sim na visão que a sociedade tem da pessoa idosa. “Me incomoda um pouco a maneira como ela é vista. Por exemplo, quando você vai ver uma vaga de idoso(a), eles(as) colocam um bonequinho com uma bengala. Já mostra, pela imagem, que o(a) idoso(a) acabou. E não é assim. Hoje em dia, tem idosos(as) muito ativos(as)”. 


Para a professora - livre docente da disciplina de Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (EPM/Unifesp), Maysa Seabra Cendoroglo, é preciso conscientizar a população sobre o etarismo, que significa a discriminação contra pessoas com base em estereótipos associados à idade. “Esse preconceito pode se manifestar por meio de diferentes abordagens ao(à) idoso(a), como piadas, infantilização e atitudes de exclusão. É preciso mudar a forma como o(a) idoso(a) é visto(a) na sociedade, como alguém de pouca valia, descartável. Muitas pessoas usam o diminutivo para falar com eles(as), minimizam a história dessa pessoa”.  

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Desejo sexual "não se perde, se adapta"

Um dos principais tabus relacionados à pessoa idosa é a sexualidade. Esse foi o tema da tese de doutorado da professora afiliada da disciplina de Geriatria e Gerontologia da EPM/Unifesp, Claudia Ajzen, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Unifesp. Na pesquisa, ela afirma que os(as) idosos(as) são encarados(as) como seres dessexualizados, sendo o desejo e a manifestação da sexualidade destituídos de sua humanidade.


Ela aponta uma lacuna nas pesquisas sobre essa faixa etária, que tendem a focar mais em aspectos ligados à saúde do que em fatores emocionais e pessoais, e revela que, geralmente, a visão da sexualidade dos(as) idosos(as) está associada a uma visão patológica, relacionada a fatores clínicos. “Na sexualidade, não são perdas que acontecem, e sim transformações. Afinal, trata-se de uma necessidade fisiológica e emocional presente em todas as fases do desenvolvimento. O desejo sexual não se perde com a idade, apenas se adapta, assim como outras capacidades físicas e mentais”. 


Marilene revela que, hoje, vive a sexualidade com o marido muito melhor do que antigamente. “Antes, não se falava sobre isso, a gente fazia sexo. Hoje, nós temos a prévia, um beijo, uma palavra, uma brincadeira durante o dia. Essas coisas não existiam antes, no começo. Hoje, a gente não tem aqueles tabus. A gente fala sobre isso, como é que foi, tem mais intimidade e abertura”. Com a passagem do tempo, chegam as transformações do corpo, que podem se tornar motivo de vergonha, tornando-se um obstáculo para vivenciar a sexualidade de forma plena. 


No casamento de Marilene, as brincadeiras com as mudanças do corpo tornam a relação mais leve e bem-humorada. “Eu penso que o Lu, ele é da academia, ele é elegante, ele é todo magrinho. Eu reclamo, às vezes, e falo: ‘Tem que comer mais, Lu. Está muito seco’. Aí, eu brinco, falo que estou com ‘pochete’, que um dia essa ‘pochete’ sai. Nós temos uma paixão muito louca. A gente não está ligado no que está acontecendo com o corpo, não”. 


Claudia explica que fazer uso de uma ou outra prática para sentir-se mais disposto(a) e atraente vai depender da representação da velhice que cada um(a) faz de si, de como cada um(a) interpreta o próprio envelhecimento. “Aceitar a realidade da idade não é necessariamente sentir-se idoso(a), mas, sim encarar positivamente as manifestações do envelhecimento”. 


Em sua tese, Claudia analisou as representações sociais de mulheres idosas sobre o corpo e a sexualidade no envelhecimento. A pesquisa demonstrou que o modo como as participantes foram criadas teve impacto na sua visão sobre a relação sexual. “A rigidez da educação, os tabus e os preconceitos com os quais as idosas foram criadas corroboraram com a manutenção de uma representação negativa da sexualidade. Existe um script sócio-histórico construído para valorizar o coito e a reprodução enquanto objetivo da relação sexual. No entanto, a sexualidade é muito mais do que a relação sexual propriamente dita. Envolve toque, atenção, cuidado, podendo ou não levar à penetração”.

“Em um ano e meio, eu já fui para 100 mil seguidores(as)”

Marilene faz parte das 32,9 milhões de pessoas idosas registradas no Brasil em 2019, segundo o IBGE. Uma representatividade de 15,7% da população. Isso significa que em 34,5% dos lares brasileiros havia, pelo menos, uma pessoa com 60 anos ou mais. Para Marilene, a aposentadoria chegou junto com o começo da pandemia. “Eu achei que fosse enlouquecer. Eu tinha na minha cabeça que eu ia parar, mas que eu ia fazer um trabalho voluntário na escola, que ia ficar indo lá alfabetizar no grupo de reforço, mas não deu. Eu pensei que ia entrar em parafuso”. 


Maysa relata que a pandemia teve impactos negativos para essa faixa etária, resultando na diminuição da mobilidade, na piora da condição física e emocional, na redução de estímulos e na impossibilidade de participar de grupos e de atividades sociais. E foi nesse período que Juliana, filha de Marilene, resolveu apresentar o Instagram para a mãe. “Um dia eu decidi que iria mostrar minha horta, meu dia a dia. Em um ano e meio, eu já fui para 100 mil seguidores(as). Agora, estou com 120 mil. Faço dancinhas e receitas. Dou 'bom dia' e jogo uma mensagem. Me mostro pintando a unha, passando batom, indo para a ginástica”. 


Uma pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) com o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) mostrou que o número de pessoas com mais de 60 anos no Brasil utilizando a internet cresceu de 68% (2018) para 97% (2021), sendo que 85% a utilizam diariamente. Marilene faz parte de um crescente grupo de influenciadores(as) digitais mais velhos(as), que somam milhares de seguidores(as) nas redes sociais. “Eu não me considerava uma influencer digital, não entendia essa nomenclatura. Quando fui ver o que uma influencer fazia e quando li o feedback dos(as) seguidores(as), eu percebi que eu era sim, no sentido de transformar ações, influenciar a vida das pessoas”.

“É fundamental se interessar pelo novo”

Marilene também usa a internet para manter a memória ativa. Uma vez por semana, durante uma hora e meia, ela faz um curso on-line em grupo. “Ela (a professora) põe exercícios na tela, que você tem que olhar. Aí, ela apaga, muda de lugar as coisas. Então, coloca de novo e pergunta qual está faltando, coisas assim”. Para Maysa, a prevenção precisa ser física, psicológica e social. “Não é só o físico que precisa ser trabalhado. É fundamental se atualizar, aprender coisas novas, se interessar pelo novo para poder interagir com as novas gerações”. 


Em 1999, a Unifesp inaugurou a Universidade Aberta à Pessoa Idosa (Uapi) com o objetivo de proporcionar mais qualidade de vida física e mental aos(às) idosos(as), abrangendo temas sobre saúde e noções gerais e atuais para a sua integração cultural e social. Possibilita ao(à) idoso(a) o aprendizado em áreas de interesse e a troca de informações e experiências para que atualize seus conhecimentos, podendo assim dar uma nova perspectiva à sua vida. 


A professora Claudia Ajzen explica que, em 1973, surgiram as primeiras Universidades da Terceira Idade, como eram chamadas inicialmente. Nas décadas de 1960 e 1970, foram criados os primeiros programas com cunho educativo para os(as) mais velhos(as), sendo o Sesc pioneiro nesse trabalho. Claudia foi professora e coordenadora da UAPI por 10 anos.  Antes da pandemia, ela explica, havia duas turmas de 80 alunos(as) por ano. Os cursos possuíam duração de um ano e se concentravam nas áreas de saúde, qualidade de vida, conhecimento, socialização, entre outras.  Em 2019, por exemplo, Claudia ministrou uma oficina digital para a turma da Uapi do Campus São Paulo, focada em aspectos como usos das redes sociais e funcionamento do Google Meet. 


A estimulação cognitiva é uma das perspectivas estudadas pelo professor titular do Departamento de Medicina Preventiva e diretor do Centro de Estudos do Envelhecimento da Unifesp Luiz Roberto Ramos. Ele iniciou, em 1991, o Projeto Epidoso com idosos(as) de 60 anos ou mais da Vila Clementino, em São Paulo. Com as pesquisas, foi constatado que o principal fator de risco para morte na terceira idade é a perda funcional, isto é, quando a pessoa perde sua autonomia e independência para atividades rotineiras, como andar, comer e tomar banho. “Isso nos mostrou que não é a doença crônica o principal fator, mas sim o quanto ela gera de perda funcional. Observamos que o risco de morte é 3x maior em quem apresenta limitações funcionais”. Também foi verificado que é possível mitigar a perda funcional a partir da promoção de atividades físicas, de meditação e de estimulação cognitiva via jogos de computador, por exemplo. “Nossa intenção, nessa fase atual da pesquisa, é levantar dados que ajudem a construir estratégias que previnam a perda funcional desses(as) idosos(as)”.  

Nos lares brasileiros e na internet

Onde e como vivem os(as) idosos(as) da sua família? Já parou para pensar que em breve será você?

As pessoas com mais de 60 anos usam a internet com frequência. Quase 90% faz uso das redes todos os dias!

“Eu me acho mais bonita, mais saudável, mais feliz”

A atividade física faz parte da rotina de Marilene. “Segunda, quarta e sexta, faço hidroginástica. Quinta, eu tenho drenagem. E faço funcional na academia quinta à tarde”. Para ela, não é só a atividade física em si que é importante, mas também o lado social. “Vale você se aprontar para sair de casa, vale as pessoas que você encontra lá e o que você troca”. Para a professora Maysa, no futuro, será necessária a criação de mais centros de promoção de saúde e de convivência da pessoa idosa. “A Unifesp possui um projeto nesse sentido, o Centro de Longevidade, que terá como objetivo reunir uma equipe multiprofissional para atender as necessidades de uma população que está envelhecendo de forma crescente”.


Marilene conta que se cuida mais na fase atual do que na juventude. “Eu sou uma pessoa muito melhor comigo hoje do que antigamente, porque antes eu vivia para meus filhos e meu marido, eu não olhava muito para mim. Eu me acho mais bonita, mais saudável, mais feliz. Eu acho que essa é a receita, porque quando você começa a olhar para você, você desenvolve melhor todo o resto”. Além dos exames de rotina, ela costuma ir a consultas regulares com o cardiologista, ginecologista, geriatra e ortopedista. “São quatro médicos, mas, graças a Deus, a gente sai sem nenhum remédio. Nos exames, não tem nada de alteração”. 


Ela diz que confia no seu plano de saúde caso precise de assistência médica. “É um plano caríssimo, para onde vai uma parte grande do nosso dinheiro, mas que nós temos certeza que vai cobrir nossas necessidades. Eu confio muito nele”. No entanto, demonstra preocupação com quem não tem as mesmas condições. “Minha preocupação são as pessoas que só procuram o(a) médico(a) quando elas estão doentes e, mesmo assim, são mal atendidas. Os(As) idosos(as) poderiam ser mais priorizados(as), não só passar na frente na hora da consulta, mas dar prioridade para que eles(as) tenham esse acesso”. 


A preocupação de Marilene encontra respaldo em pesquisas que demonstram que envelhecer com qualidade de vida está relacionado também com o nível de escolaridade e a renda. Maria do Desterro da Costa e Silva analisou os fatores associados à perda funcional em idosos(as) de Maceió durante seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em sua pesquisa, ela constatou que “a baixa renda per capita dos(as) idosos(as) associada a um suporte ineficiente priva-os(as) de uma adequada assistência à saúde, da compra de medicamentos ou de pagamento da mensalidade de plano de saúde, com reflexos diretos na sua capacidade funcional, uma vez que a renda é um dos elementos essenciais para a preservação da autonomia e para a manutenção da saúde”. Sobre o nível de escolaridade, Maria do Desterro afirma que o grande número de indivíduos analfabetos e com baixa escolaridade reforça a ideia de uma rede ineficiente durante a vida, que se revela em questões como habitação, cultura, renda e saúde. Por outro lado, pessoas com um maior grau de instrução têm maiores preocupações com a saúde e capacidade de recuperação. Diante desse cenário, a pesquisadora defende a necessidade de investimentos em políticas públicas que priorizem o acesso a sistemas de saúde e seguridade social, possibilitando o envelhecimento saudável da população por meio de estratégias de médio e longo prazo.




Medicina, saúde e prevenção: "foco na saúde, não na doença"

Prevenção. Para Marilene, é nesse sentido que a medicina precisa caminhar. “O foco da medicina deveria estar na saúde e não apenas na doença. Hoje, parece que está só na doença, na compra de remédio. Eu vejo que, no curso de medicina, eles(as) estão aprendendo a mexer no corpo, mas não estão aprendendo esse ‘antes’. Não existe o olhar com o(a) idoso(a), o olhar de antes, do abraço em uma consulta, de acolher. Alguns não olham para a cara dos(as) idosos(as), não sentem por que a pessoa está ali. Não consideram que a pessoa saiu de casa com dificuldade”. Ela usa o próprio exemplo para mostrar como o olhar do(a) médico(a) pode fazer a diferença. “Colocar o marca-passo e me devolver para casa é uma coisa. Agora, se a pessoa tiver um médico, como eu tive um, que olhou para mim e falou ‘Vamos tentar? Você vai fazer atividade física e voltar daqui a dois meses. Vamos ver o que mudará’. Podia ser até que eu tivesse que colocar o marca-passo, mas eu acreditei nele. Ele fez eu acreditar em mim também”. 


Marilene sente uma diferença de tratamento entre os(as) residentes, que ainda estão em formação, e os(as) médicos(as) já formados(as). “É preciso melhorar a formação dos(as) médicos(as), é uma falha da universidade. Eu via nos(as) residentes a vontade de cuidar, de dar carinho, de estar com os(as) idosos(as). Fico com a impressão de que eles(as) tinham que sair mais humanos(as) de lá, mas não é assim. Na hora em que ele(a) consegue um consultório, ele(a) não é mais esse(a) médico(a)”. 


Da mesma forma, Maysa defende que é preciso uma mudança no olhar do tratamento em direção à prevenção. “Não vamos impedir que a doença apareça, mas podemos fazer com que apareça mais tarde e com menos impacto”. Para a pesquisadora, um aspecto importante que precisa ser levado em conta na formação dos(as) profissionais de saúde do futuro é o ensino sobre a diferença entre o que é, de fato, uma doença e o que é consequência do envelhecimento fisiológico. “Esse(a) profissional precisa saber diferenciar, a fim de propor adaptações e tratamentos adequados para cada situação. Se você trata o envelhecimento fisiológico como doença, você pode, sem querer, por desconhecimento, trazer consequências negativas para o(a) paciente. O(A) médico(a), em geral, não sabe como proceder. Nem sempre o principal está relacionado à doença, mas, sim, com questões próprias do envelhecimento”. 


Nessa mesma direção, o professor Luiz Roberto Ramos acredita que serão necessárias adaptações na formação dos(as) médicos(as) do futuro. “A inserção da Geriatria no currículo da medicina, por exemplo, ainda é pequena, precisa aumentar. O que a medicina podia fazer em termos de diagnóstico, tratamento e desenvolvimento de medicamentos para as doenças, ela fez. Temos remédios para a maioria das doenças. A medicina entende muito bem a fisiopatologia do envelhecimento, mas as medidas necessárias para lidar com a perda funcional não fazem parte do currículo. Medidas para controlar as doenças já existem e são muito efetivas, mas isso não significa que o(a) idoso(a) será autônomo(a) e independente, porque depende do seu estilo de vida. Pode ter uma doença controlada, mas evoluir mal em termos de funcionalidade se comer mal e não for ativo(a), por exemplo. Dois(Duas) idosos(as) podem ter a mesma doença e evoluir de formas diferentes em termos de perda funcional. O saber médico precisa ser ampliado nessa direção”. 


Tanto Maysa quanto Luiz Roberto afirmam que atividade física, alimentação saudável e estimulação cognitiva são medidas importantes para se envelhecer bem. Doenças crônicas, se controladas e compensadas, por exemplo, não apresentam impactos significativos na longevidade. Maysa pontua que, até os 80 anos, 30% é contribuição da genética e 70% é contribuição do nosso estilo de vida. “A genética não é garantia de que você vá sobreviver. Você precisa fazer a sua parte para uma longevidade independente. É a genética e mais a sua preparação para isso”. 


Para Luiz Roberto, o enfoque precisa ser multidimensional em termos do que perguntar ao(à) paciente e multiprofissional em termos das pessoas envolvidas nesse cuidado. O foco deve estar na funcionalidade. “Não são só as doenças, mas as repercussões funcionais que devem ser estudadas. É preciso olhar para a função e ter um sistema que possa interferir por meio da atividade física, da estimulação cognitiva, da reabilitação. As profissões relacionadas com a reabilitação serão cada vez mais importantes à medida que a população for envelhecendo”. O professor acredita que será preciso criar grupos de risco com intervenções específicas no futuro. “Esse é o objetivo do nosso estudo: agrupar idosos(a) com as mesmas características e fatores de risco, e apontar os modelos de intervenção necessários para aquele grupo. Isso deve instruir o ensino dos(as) futuros(as) médicos(as). Com que idoso(a) estou falando? Ele(a) está ativo(a) ou está na cadeira de rodas? Ele(a) toma banho sozinho(a)?”. 


Considerando o crescente envelhecimento populacional, a Unifesp definiu a Longevidade como um dos eixos norteadores do desenvolvimento institucional e um dos temas prioritários indicados para a internacionalização da pesquisa na universidade, por meio do Programa Institucional de Internacionalização (Capes-PrInt), que incentiva a formação de redes de pesquisas internacionais para aprimorar a qualidade da produção acadêmica vinculada à pós-graduação brasileira.

“Quanto mais velho(a), mais único(a) o(a) idoso(a) é”

Quando se fala na quarta idade, isto é, em pessoas que estão com 80 anos ou mais, há um caminho ainda maior a ser percorrido. Maysa coordena o Projeto Longevos, desenvolvido na Unifesp, que pesquisa pessoas nessa faixa etária desde 2010. A professora conta que não há diretrizes de saúde específicas para a quarta idade. “A maioria das pesquisas não incluem essas pessoas. Não há respostas tanto em termos de tratamento quanto de prevenção. A maioria das questões está em aberto. As informações ainda são escassas”. 


Outro problema apontado pela pesquisadora é que muitos estudos misturam idosos(as) frágeis e dependentes, que mais procuram os serviços de saúde, com idosos(as) independentes, ativos(as), saudáveis e integrados(a). Para atender essa demanda, ela conta que começaram a surgir consórcios, grupos de pesquisa em diferentes áreas para estudar essa faixa etária mais idosa. No entanto, explica que, até que essas pesquisas cheguem à prática, pode demorar. Esse olhar multidimensional sobre o envelhecimento é buscado no Grupo de Trabalho (GT) Inovação em Longevidade. do Instituto de Estudos Avançados e Convergentes (IEAC/Unifesp), coordenado por Maysa. O objetivo do GT, iniciado em julho de 2022, é aproximar pesquisadores(as) de várias áreas que estudam o envelhecimento a fim de estimular o debate e a inovação científica em longevidade em um contexto transdisciplinar e inclusivo.  


Segundo a professora, a maior parte dos idosos 80+ é independente, não estando necessariamente vinculada ao serviço de saúde. Ela destaca a heterogeneidade dessa faixa etária, o que torna difícil sua generalização. “Quanto mais velho(a), mais único(a) o(a) idoso(a) é, menor é a possibilidade de generalizá-lo(a). Quanto mais idoso(a), mais individual. A velocidade de mudança nessa fase da vida é muito maior. Cada década muda muito”. Com o Projeto Longevos, seu intuito é entender como o(a) idoso(a) saudável envelhece e quais fatores influenciam para uma longevidade independente. 


No total, aproximadamente 400 idosos(as) participaram da pesquisa. “Os(As) idosos(as) só saem do estudo quando morrem. Quando começam a apresentar demência, saem da avaliação, mas não do estudo”. Os(As) idosos(as) que foram selecionados(as) tinham que ser independentes e sem problemas cognitivos ou doenças graves. “Selecionamos os(as) idosos(as) que surpreendem, que ninguém vê ou sabe que estão acima de 80 anos. A gente costuma relacionar a velhice à dependência, mas a idade cronológica é diferente da idade biológica”. Todo ano, o projeto realizava uma avaliação geriátrica global, aplicando testes de capacidade cognitiva, física, emocional e social. “Uma abordagem ampla para entender seu contexto, como as condições evoluem. Também era feita uma avaliação nutricional e com fisioterapeuta”. Na fase atual, os(as) pesquisadores(as) envolvidos(as) no projeto irão compilar e analisar os resultados de uma década de estudos.


Maysa aponta alguns fatores em comum entre as pessoas na quarta idade. “Positividade e resiliência são características comuns entre os(as) centenários(as). Eles(as) possuem capacidade de adaptação e disposição para contribuir e superar dificuldades. Possuem disposição para acreditar que podem ficar melhores, mesmo que não fiquem como eram antes. Adaptam suas expectativas às suas possibilidades atuais”. Além disso, ressalta a importância das relações sociais. “Se o(a) idoso(a) não se mantém engajado(a) socialmente, ele(a) vai ficar sozinho(a), isolado(a). Ele(a) precisa de novas relações, já que as amizades morrem. Há uma perda de referências”. Para Maysa, o foco não deve ser a independência dos(as) idosos(as), mas a sua autonomia. “Autonomia é ter objetivos, aspectos que deseja realizar e ter o poder de tomar decisões para que isso aconteça”.

Ele passou dos 100: “Sou muito grato à vida e às amizades”

Com 101 anos, Manuel Soares da Silva é o participante mais velho do Projeto Longevos. Pergunto a ele qual é a receita para chegar a essa idade com saúde. “Rezo muito, tenho muita fé, Deus me ajudou a chegar até aqui”. Ele também ressalta que nunca fumou ou consumiu bebida alcoólica em excesso. Sobre a alimentação, conta que sempre foi muito simples e caseira. “Sempre tive uma alimentação comum, bem caseira, da roça, como feijão, arroz e macarrão. Não tinha nada de especial, nada de luxo”.

Em razão das dores que sente na coluna e no joelho, Manuel começou a fazer atividade física em 2013 por recomendação médica. “Comecei a fazer ‘ginástica de idoso(a)’ no clube, para diminuir minhas dores. Só que, em 2020, com a pandemia, tive que parar. E as dores pioraram muito”. Hoje, precisa de um andador para se locomover, mas nem por isso deixa de se manter ativo. Ele conta que se exercita em casa, fazendo o que aprendeu no clube. “Me mexo aqui mesmo, caminhando pela casa, me segurando nas paredes. Tomo cuidado para não cair. Se sinto dor, me deito ou fico sentado”. Ele diz que, infelizmente, em razão das limitações físicas, não consegue ajudar a filha em casa, com quem mora atualmente. “Ela que faz tudo aqui. Pego a vassoura para ajudar, mas preciso me segurar, não consigo”. Apesar das restrições em decorrência da idade, ele afirma que se sente bem e demonstra gratidão pelas oportunidades que teve e pelos laços que criou. “Sou muito grato à vida e às amizades. Sempre convivi bem com as pessoas que conheci”. 

Manuel começou a trabalhar na lavoura com o pai aos 7 anos. “Eu acordava cedo, tomava café com meu pai e ia para a roça. Chegava a trabalhar dez horas por dia. Só descansava no domingo”. Ele afirma que não tinha tempo para lazer nem para passear. “Minha vida inteira foi trabalhar. Meu trabalho era a minha diversão”.  Aos 38 anos, saiu do interior de Alagoas, onde morava, e veio para São Paulo. “Eu não tinha estudo, só tinha feito o primário. Então, fui aprender a ser pedreiro”. Na construção civil, Manuel descobriu o gosto pela matemática. Até hoje, para passar o tempo, costuma desenhar e fazer cálculos. 

Ele acredita que, hoje, está se envelhecendo melhor em razão do avanço da medicina. “No meu tempo, não se tinha acesso a médicos(as) ou hospital onde eu morava. Só quem tinha dinheiro tinha acesso. Não tinha saúde pública. Na roça, eram os(as) mais velhos(as) que ajudavam, receitando remédios caseiros, como chás. A gente usava plantas medicinais”. Ele revela que nunca tinha feito exame de sangue antes de chegar a São Paulo. “No Hospital São Paulo, onde sempre fui tratado, fiz vários exames, inclusive de sangue. Sou muito bem atendido lá”. Manuel deposita esperança na medicina para que as pessoas consigam viver cada vez mais e melhor.  “Eu espero que os(as) médicos(as) estudem muito para descobrir as doenças que ainda estão por vir”. 

Chegando ao final da conversa, fica claro que gratidão, simplicidade e humildade fazem parte da forma como Manuel vê a vida. Ele agradece a conversa, diz que se sente muito feliz por ser ouvido e ainda se desculpa caso não tenha conseguido se expressar bem. A lucidez com que esse centenário respondeu às perguntas durante a entrevista impressionou, demonstrando uma sabedoria que só o tempo é capaz de ensinar. A verdade é que não sabemos como envelheceremos no futuro, mas já temos pistas no presente de como podemos nos preparar para conquistar uma longevidade com saúde e autonomia, como Manuel.

Dados do envelhecimento no Brasil segundo o IBGE

A população idosa já superava a de crianças de até 9 anos em 2019.

A expectativa é de que, até 2030, o marco de 5º país com população mais idosa do mundo seja atingido.

Serviços e programas mencionados na reportagem: 

Universidade Aberta para as Pessoas Idosas

Foi inaugurada em 1999 como Universidade Aberta à Terceira Idade (Uati). É um núcleo vinculado à Coordenadoria de Direitos Humanos da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec/Unifesp). Tem como objetivo proporcionar mais qualidade de vida física e mental aos(às) idosos(as), abrangendo temas sobre saúde e noções gerais e atuais para sua integração cultural e social. Possibilita ao(à) idoso(a) o aprendizado e a troca de informações e experiências a fim de atualizar seus conhecimentos, podendo, assim, dar uma nova perspectiva à sua vida. 

Grupo de Trabalho Inovação na Longevidade do Instituto de Estudos Avançados e Convergentes

O grupo, coordenado pela professora Maysa Seabra Cendoroglo, iniciou as atividades em julho de 2022. Busca aproximar saberes interdisciplinares e translacionais que contribuam para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, a fim de formular propostas inovadoras que melhor equacionem o cuidado e a construção do saber. Tem como objetivo estimular o empreendedorismo científico e a inovação em longevidade em um contexto transdisciplinar e inclusivo.

Projeto Longevos

Coordenado pela professora Maysa Seabra Cendoroglo, o projeto iniciou em 2010. O objetivo é investigar idosos(as) independentes, sem doenças graves, muitas vezes considerados(as) saudáveis, com 80 anos ou mais. Busca entender como o(a) idoso(a) saudável envelhece e quais fatores influenciam para uma longevidade independente. No total, cerca de 400 idosos(as) participaram da pesquisa. Todo ano, o projeto realizava uma avaliação geriátrica global, aplicando testes de capacidade cognitiva, física, emocional e social. Na fase atual, os(as) pesquisadores(as) irão compilar e analisar os resultados de uma década de estudos.

Projeto Epidoso - Centro de Estudos do Envelhecimento 

O projeto Epidoso, iniciativa pioneira coordenada pelo professor Luiz Roberto Ramos, acompanha clínica e epidemiologicamente idosos(as) residentes na Vila Clementino, em São Paulo, desde os anos 1990. O objetivo é a promoção da saúde dos(as) idosos(as) a fim de minimizar as perdas funcionais inerentes ao envelhecimento. O Centro de Estudos do Envelhecimento, pertencente ao Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), conta com uma equipe multidisciplinar, sendo responsável pelas ações de pesquisa e de assistência desenvolvidas.

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