Reportagem
O Que Há Por Trás do Muro: os desafios para a diversidade dentro da universidade pública
Por Agnes Arruda
O Censo da Educação Superior 2022, realizado pelo Ministério da Educação (MEC),estima que, no Brasil, há 22,5 milhões de jovens com idade entre 18 a 24 anos. Cabe ressaltar que esse número está contido em outro, e esse, sim, compõe um universo muito restrito: ainda de acordo com o Censo,
43,4% concluiu o ensino médio
20,2% frequenta a Educação Superior
21,2% não concluiu o Ensino Médio
Com esses dados em mente, não é de se estranhar, afinal, que quase metade da população brasileira não faça ideia do que existe, nem do que se faz por trás dos muros de uma universidade pública.
Fosse só o desconhecimento, a preocupação com os números já se justificaria. No entanto, de 2014 a 2018, os cortes do governo federal no orçamento do ensino superior foram de 56%.
Além da redução de verba, de 2019 a 2022, as decisões do governo federal em relação ao ensino superior também interferiram na liberdade de cátedra e de autonomia universitária das instituições. Foi marcante, nesse período, o momento em que o então ministro da Educação declarou que a universidade pública deveria, na verdade, ser para poucos.
Esse descolamento com a realidade da população, entre tantos outros fatores, foi um dos responsáveis por conduzir as universidades públicas a uma situação de calamidade nos últimos anos.
Na Unifesp, por exemplo, os cortes afetaram as bolsas de estudo e pesquisa, a oferta de alimentação para os(as) estudantes e o pagamento de despesas básicas, como água e luz.
Tudo isso aconteceu debaixo dos nossos olhos até que a pandemia de covid-19 revelou o óbvio: sem as universidades públicas, que inclusive é responsável por 95% do conhecimento científico de todo o país, mesmo sendo apenas 12% das instituições do ensino superior no Brasil, a crise sanitária teria efeitos ainda mais graves que os já sentidos.
Foi a própria Unifesp, inclusive, que conduziu, no Brasil, os testes de eficácia da vacina produzida pela Universidade de Oxford, do Reino Unido.
Quase quatro anos depois e ainda enfrentando um conturbado cenário político-eleitoral que permitiu a alternância de governo, os recursos federais finalmente estão voltando para as universidades, assim como as políticas que garantem o ingresso e a permanência de estudantes de perfil diverso, em especial aqueles(as) advindos(as) de minorias sociais-, nas universidades públicas.
E é justamente no quesito diversidade que os desafios são múltiplos e os resultados só poderão ser percebidos daqui a alguns anos, a exemplo do que estamos vendo, agora, com o aniversário de uma década da Lei de Cotas.
Na análise, entre erros e acertos, a certeza de que o caminho está “na articulação; no diálogo entre os saberes”, afirma Débora Galvani, pró-reitora de Extensão e Cultura da Unifesp.
“Passamos por um momento de compreensão da existência de diversas formas de produzir conhecimento e de se ligar com o mundo”, afirma. “Assim buscamos, cada vez mais, por esse diálogo.”
Uma fenda na estrutura
Instituídas no Brasil apenas durante o período da República, as universidades públicas sempre foram território de disputa e, durante muito tempo, foi para muito poucos.
Isso porque o projeto de Darcy Ribeiro de uma universidade pública na qual as instituições são integradas, orgânicas e atuantes, e em que a cultura científica se integra às necessidades de profissionalização, foi interrompido no embrião:
Instituída por João Goulart em 1961, a Universidade de Brasília (UnB) teve sua primeira invasão pelos militares em 1964, depois outras três invasões aconteceram: 1965, 1968 e 1977.
Foi apenas a partir dos anos 2000, estruturado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, que o ensino superior público no Brasil começou a receber atenção por parte do Governo Federal, também mais de 20 anos depois da redemocratização.
De acordo com o MEC, os investimentos no ensino superior realizados nesse período renderam aumento de 31% de instituições federais, 86% de matrículas nos cursos de graduação e impressionantes 316% de matrículas na pós-graduação.
Apesar disso, hoje as instituições públicas de ensino superior ainda representam apenas 12% da rede no país; e a Lei de Cotas, uma das principais políticas afirmativas do governo federal, têm tido seus resultados amplamente debatidos, em especial por conta do seu aniversário de 10 anos.
Atualizada em 2023, a política dispõe sobre a reserva de 50% das vagas em cursos superiores de instituições federais de ensino para minorias historicamente excluídas.
Longe do ideal, mas já com uma alteração representativa no perfil dos(as) estudantes, estima-se que 1,1 milhão de pessoas de perfil diverso ingressaram no nível superior de ensino a partir da Lei das Cotas.
Assista:
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Cotas nas Universidades Públicas, um caminho para a superação do conservadorismo obscurantista
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Presença de estudantes indígenas da pós-graduação
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Os desafios na pós-graduação
Se o ingresso na universidade pública já é um desafio para quem não teve acesso à educação básica e ao ensino médio de qualidade, nem se enquadra em alguma das categorias da Lei de Cotas, com o Plano Nacional de Permanência Estudantil, o Pnaes, o desafio é manter aqueles(as) que chegam dentro da universidade.
No Censo da Educação Superior 2022, outro dado também chamou à atenção:
O número de concluintes de cursos de graduação nas universidades públicas também vem diminuindo; de 2021 para 2022, a queda foi de 3%.
Assim, chegar à pós-graduação, em especial à stricto sensu, ou seja, ao mestrado e ao doutorado, é um feito que apenas 0,8% da população brasileira alcançou. Quem apresenta o dado é a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OECD).
Isso porque, mesmo concentrando a menor fatia de estudantes de graduação, as instituições públicas de ensino concentram 80% dos programas de pós-graduação no país, revelando, então, a estratificação socioeconômica da ciência do Brasil.
Cabe ressaltar que 90% dos programas melhor avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) estão nas universidades públicas.
Diante desse cenário, o pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da Unifesp, Fernando Atique, afirma que as ações dos próximos anos devem se direcionar à reconstrução desse sistema com vistas à diversidade. “O que vamos fazer nos próximos cinco anos vai determinar aquilo que vai acontecer nos outros 10”, afirma.
Atique explica que, com o passar dos anos, o perfil do(a) estudante de pós-graduação mudou, e que o período de quarentena por causa da covid-19 acabou afastando ainda mais os(as) potenciais ingressantes na pós-graduação.
Leia mais: Como a pandemia afeta a produção científica no Brasil
Isso porque investir na carreira de pesquisa no Brasil requer certa dedicação cujos retornos, muitas vezes, estão aquém do esperado. O fenômeno intitulado fuga de cérebros, por exemplo, quando, após se formarem, os(as) pesquisadores(as) buscam por outro país para poder ter chance de contratação, é uma realidade latente no Brasil.
“A pessoa estuda oito anos para conseguir um emprego onde?”, questiona Atique. “Os últimos anos, no Brasil, minaram a previsibilidade das carreiras.” Nesse sentido, o pró-reitor pondera para a pesquisa o que justamente tem sido apontado em relação às universidades públicas no geral: “não pode ser tão distante da população”.
Com a possibilidade de pessoas de perfil diverso ingressarem nas universidades, permitir que elas também cheguem à pós-graduação, “é a oportunidade que temos de ver gente formada e pensando em todas as áreas básicas, naturais e humanas, com enriquecimento de repertório”, afirma.
Nesse sentido, aqui na Unifesp, além da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Ações Afirmativas (Praepa/Unifesp), a relação entre ensino, pesquisa e ações e programas de extensão têm se debruçado sobre meios de construir e devolver para a sociedade conhecimentos e práticas verdadeiramente alinhadas com suas necessidades e interesses.
Escadas e pontes
Débora Galvani, pró-reitora de Extensão e Cultura da Unifesp, explica que a Proec/Unifesp vem se debruçando na busca por estratégias metodológicas que incentivem ações transdisciplinares e entre os campi no enfrentamento de problemas contemporâneos.
Como resultado concreto dessa política, a Unifesp realizou, em janeiro de 2024, a primeira seleção de ingressantes de seu novo curso, a Licenciatura Intercultural Indígena.
Conforme explica Ana Maria Gouw, pró-reitora de graduação da Unifesp, o curso é oferecido no Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) - Campus Baixada Santista, e é destinado, mas não limitado, a professores(as) indígenas dos anos iniciais do ensino fundamental em escolas das próprias aldeias.
Surgido a partir de um projeto de extensão, o curso é uma resposta direta a uma necessidade social.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, passou a garantir aos povos originários os mesmos direitos para serem alfabetizados no seu pertencimento – ou seja, na sua aldeia, o que criou demanda para profissionais indígenas da Educação.
“Temos ensino, pesquisa e extensão com impacto nas políticas públicas, pondo em prática o que entendemos por inclusão e diversidade”, pondera Gouw, transparecendo otimismo com o que está por vir. Sim, o muro é alto, com escadas e pontes conseguimos passar por ele.